30/12/2025

O livro “20 anos a fazer do Porto casa”, lançado por ocasião do 20.º aniversário da Domus Social, propôs-se a ser mais do que o relato da missão que tem vindo a ser concretizada pela empresa municipal. Folhear as mais de 500 páginas desta obra comemorativa é, ao mesmo tempo, uma oportunidade para conhecer melhor a evolução da cidade do Porto, nomeadamente em matéria de habitação social, e para revisitar diferentes décadas e respetivos contextos históricos, políticos e sociais da Invicta. Este espaço de estudo e de reflexão é, por isso, pontuado por nove artigos académicos originais, da autoria de especialistas de diversas áreas.

 

O sétimo texto desta coletânea - publicado agora em versão digital - é assinado pelo economista Carlos Machado e Moura, arquiteto e investigador no CEAU-FAUP. Paralelamente à atividade profissional, que exerce no atelier MAVAA arquitectos, é atualmente diretor-adjunto do J–A Jornal Arquitectos, docente convidado na Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto e na Escola de Arquitetura, Arte e Design da Universidade do Minho, e consultor na panoramah!®.

 

 

Projetar (2024) [p.464-472] 

 

Para uma habitação pública.

 

Este breve contributo procura refletir sobre a atual crise da habitação em Portugal e questionar o papel dos arquitetos, reclamando uma implicação mais ativa e num campo mais alargado do que habitualmente se lhes reconhece.

 

Tomando de empréstimo os títulos de três textos de Le Corbusier escritos há precisamente um século: “Précisions sur un état present de l’architecture et de l’urbanisme” (Éditions Crès, Collection de “L’Esprit Nouveau”, Paris, 1930), “Besoins-types. Meubles- -types” (L’Esprit Nouveau, n.º 23, 1924) e “Trois rappels à messieurs les architectes” (L’Esprit Nouveau, n.º 1, 1920), republicado no célebre Para uma Arquitetura [Vers une Architecture] (1923), organizam- -se três notas sobre as circunstâncias da atual crise da habitação em Portugal; discute-se a repetição dos modelos tipológicos em recentes intervenções, defendendo a habitação pública como campo de experimentação arquitetónica; e, por fim, reclama-se uma participação mais ativa dos arquitetos enquanto agentes presentes na espacialização dos problemas da sociedade, contribuindo para a criação de instrumentos legais e de gestão a montante da produção do objeto arquitetónico, na procura de melhores condições de encomenda e de acordo com um entendimento mais amplo da profissão, tanto a nível territorial como das ferramentas e objetivos a que se propõe.

 

 

1. Precisões sobre um estado presente da habitação em Portugal [1]

 

O artigo 65.º da Constituição da República afirma que “todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar”.

 

No entanto, qualquer pessoa com um salário médio, que viva numa grande cidade, sentirá que esse direito não lhe é garantido. Mesmo com acesso a empregos qualificados, muitos jovens não conseguem sair de casa dos pais, assim como muitos casais preferem não fazer crescer a família por não conseguir mudar para uma casa maior. Com efeito, desde 2014, o preço da habitação em Portugal tem subido anualmente mais de 6% e, ao contrário do que se começa a observar noutros países da União Europeia, ainda não dá sinais de estabilização.

 

Vários fatores justificam esta subida, alguns estatisticamente menos expressivos e circunscritos principalmente a Lisboa, ao Porto e ao Algarve, ligados ao aumento exponencial do alojamento turístico e do investimento estrangeiro no mercado imobiliário. Mais generalizadamente, essa ascensão fica a dever-se a um desinvestimento continuado em políticas de habitação e a uma enorme redução na construção de habitação.

 

Por um lado, assistimos ao resultado das enormes injeções de capital na economia, levadas a cabo pelos bancos centrais na sequência da crise financeira de 2008 e da pandemia em 2020. Por outro, a manutenção de taxas de juro anormalmente baixas durante muitos anos, criou incentivos à compra de casa e ao aumento da procura. Como resultado, no final de 2022, o preço médio da habitação em Portugal praticamente duplicou os valores de 2011. Trata- -se, de resto, de uma subida de preços da habitação comum a toda a União Europeia e, em geral, a todos os países desenvolvidos. [2]

 

Simultaneamente, registou-se uma redução drástica na construção de novas habitações. Segundo os Censos, entre 1976 e 2011, construíram-se em média cerca de 800 mil novas casas por ano. Nos últimos 10 anos, a situação inverteu-se e construíram-se apenas 100 mil casas, ou seja 700 mil a menos do que em cada uma das três décadas anteriores. Dados da Pordata sugerem uma quebra de 500% nos últimos vinte anos (de 125.700 em 2002 para 20.156 fogos em 2022).

 

Tudo isto ajuda a explicar que, quase meio século depois do Serviço de Apoio Ambulatório Local (SAAL) — um curto e intenso programa de arquitetura participativa e multidisciplinar que visava responder à carência de cerca de meio milhão de fogos — volte a ser premente a reivindicação do direito à habitação e à cidade. A testemunhá-lo estão as semelhanças entre as manifestações ocorridas em 1975 e as de 2023, situação que não acontecia há, pelo menos, dez anos.

 

Qual deve ser o papel do Estado neste domínio? Tendo Portugal apenas 2% de habitação pública, comparativamente aos 30% de outros países europeus, como a Holanda ou a Áustria, é unânime que, para além de apostar em políticas de regulação do mercado, há necessidade de travar a escalada de preços atuando também pelo lado da oferta. De resto, a crise da habitação tem gerado um debate público que motivou a decisão de executar, através do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), a construção de 26.000 habitações até 2026. Mesmo sabendo que, e ainda que todo o financiamento do PRR fosse alocado à habitação, não conseguiríamos atingir um terço da proporção da oferta pública dos países do norte da Europa.

 

Manifestações pelo direito à habitação durante a vigência do programa SAAL. Fotografia de Teresa Miranda

 

 

2. Necessidades-tipo, Casas-tipo 

 

A habitação pública foi o laboratório privilegiado da experimentação arquitetónica no que toca às tipologias residenciais ao longo do século XX. Assistimos a uma fértil produção em termos de tecido urbano, sistemas de acesso e organização interna das habitações. No nosso país, vimos exemplos particularmente ricos, como os dos projetos integrados dos Olivais ou de Chelas, em Lisboa, ou nos bairros no Plano de Melhoramentos, no Porto. Contudo, com a viragem do século, entre os constrangimentos ditados pelos regulamentos e os modelos do “mercado” imobiliário, presenciamos uma crescente normalização das soluções habitacionais, em esquemas clássicos T1, T2 e T3.

 

Num texto de 1986, a propósito do conjunto de habitação social Nemausus, em Nîmes (França), Jean Nouvel escrevia:

 

Temos de nos afastar daquelas plantas inevitáveis que todos conhecemos e que têm sido produzidas vezes sem conta ao longo dos últimos vinte anos: à direita um pequeno armário, a cozinha à esquerda, em frente uma porta de vidro com duas folhas para a sala, seguida por uma porta pequena ao lado para a zona de dormir, composta por pequenos armários ao longo do corredor estreito, dois ou três pequenos quartos e, ao fundo, um quarto de banho mal iluminado. Tudo espremido tanto quanto possível; e talvez haja uma pequena galeria ou uma pequena varanda algures.

 

Edifício em Aldoar do arquiteto Manuel Correia Fernandes pertencente à cooperativa de habitação SACHE. Fotografia de Luís Ferreira Alves / Casa da Arquitetura

 

A constatação desta fatalidade parece assentar como uma luva na repetição tipológica a que temos assistido em Portugal no contexto da habitação plurifamiliar, sobretudo nos últimos 50 anos, surgindo em contracorrente face às alterações radicais nos agregados — com a dissolução da família tradicional e a reorganização territorial dos espaços de habitar, de trabalho e de ensino —, e à introdução do teletrabalho trazida, e entretanto normalizada, pela pandemia. A tudo isto junta-se o expressivo envelhecimento da população portuguesa e um consistente aumento dos números da imigração, o que deveria levar-nos a pensar na oportunidade de ensaiar e explorar modelos alternativos aos estabilizados na segunda metade do século XX. Se não existem “necessidades-tipo”, porque devemos continuar a apostar exclusivamente em “habitações-tipo”?

 

O abandono da experimentação tipológica é tanto mais evidente quando olhamos para o espartilho imposto em concursos de habitação pública – de que são particulares exemplos os recentemente levados a cabo pelo IHRU –, onde se promovem soluções conservadoras do ponto de vista da organização interior dos fogos e, por exemplo, a recusa de tipologias de acesso em galeria ou outras que não o esquerdo-direito.

 

Nesse sentido, ocorreria perguntar até que ponto é que a legislação e o enquadramento legal desenham? Qual será o papel dos arquitetos num enquadramento cada vez mais estreito de absoluta normalização e tipificação? Não seria espectável que, a exemplo do que acontece no centro da Europa, assistíssemos a uma maior experimentação ao nível das tipologias arquitetónicas, potenciando diferentes lógicas de apropriação, espaços sem funções vinculadas, ou até esquemas partilhados de agrupamento de fogos, segundo modelos de coabitação? Não é expectável que a habitação pública volte a ser o lugar da experimentação arquitetónica e da exploração de modelos alternativos, não forçosamente ditados pela otimização financeira do metro quadrado e pela opção por soluções de comprovada aceitação pelo mercado?

 

Seria injusto não reconhecer que há casos interessantes, ainda que numa escala reduzida. Vejam-se as onze residências partilhadas realizadas pela Domus Social e geridas por várias juntas de freguesia da cidade do Porto e que permitiram acolher, nos últimos anos, cerca de 30 pessoas seniores num modelo de coabitação.

 

Do mesmo modo, torna-se também especialmente relevante olhar para o legado das cooperativas de habitação particularmente populares no período pós-revolucionário e nas décadas seguintes: em Portugal, nas décadas de 1980 e 1990, mais de 500 cooperativas foram responsáveis pela produção de oito a nove mil casas por ano. Entradas em declínio no início do milénio e, sobretudo, com a crise financeira de 2009, as cerca de 50 cooperativas ainda existentes em Portugal construiram apenas uma média de 16 casas por ano, nos últimos 12 anos. Ainda assim, estima-se que existiam perto de 200 mil casas no sector cooperativo, alojamento de cerca de 600 mil pessoas, ou seja, de 6% da população portuguesa. Este dado é tão mais relevante se tivermos em conta que, em alguns dos países europeus que detêm 30% de habitação pública, como é o caso dos Países Baixos, o sector cooperativo é contabilizado como habitação social.

 

Tendo em conta os exemplos arquitetónicos e urbanísticos realizados no nosso país, alguns dos quais excelentes —, como é o caso das Cooperativas de Aldoar e de tantas outras na cidade do Porto — mesmo que hoje impossíveis de replicar pelo incumprimento de exigências regulamentares ao nível da organização dos fogos e pela opção por soluções arquitetónicas com desníveis e meios pisos, como se pode gerar capital social para formentar a auto-organização? Que mecanismos deverão ser ativados pelo Estado para reabilitar este modelo de habitação a custos controlados e não lucrativo, fazendo vingar uma recuperação do movimento cooperativo?

 

 

3. Três avisos aos arquitetos e às arquitetas

 

Para além do papel do Estado, importa interrogar o lugar dos arquitetos e o seu contributo no contexto mais alargado da promoção de uma habitação pública e na militância contra a crise da habitação. Sem ser caucionários, ou fazer “avisos”, como Le Corbusier, podemos avançar três notas sobre formas de reclamar uma maior relevância da arquitetura para a sociedade, para lá das abundantemente celebradas vertentes artísticas e autorais.

 

Em primeiro lugar, importa, perante os múltiplos desafios com que somos hoje confrontados — sociais, políticos, económicos e ambientais —, entender a arquitetura como um processo alargado, de análise, compreensão e construção da realidade às escalas arquitetónica, urbana e territorial. Em síntese, é fundamental deixar de ver o arquiteto apenas como um criador de objetos pristinos e formalmente interessantes, mas antes como um espacializador de problemas, onde o projeto de novas realidades poderá ser a resposta a esses problemas.

 

Em segundo lugar, urge também recuperar um papel mais ativo dos arquitetos na esfera política e no debate dos vários assuntos com impacto no futuro do país. De resto, as presenças de Fernando Távora na Câmara Municipal do Porto (CMP) e na génese do Comissariado para a Renovação da Área Urbana da Ribeira/Barredo (CRUARB), de Nuno Teotónio Pereira nas Caixas de Previdência, de Raúl Hestnes Ferreira na Direção-Geral das Construções Escolares, de Manuel Vicente no Fundo de Fomento à Habitação (FFH), de Nuno Portas e de Alexandre Alves Costa no Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC), de Nuno Portas como Secretário de Estado da Habitação na origem do programa SAAL, de Helena Roseta na Assembleia Constituinte e na Assembleia da República, com papel ativo na criação da Lei de Bases da Habitação e do programa Bairros Saudáveis, ou de Manuel Correia Fernandes, na regeneração urbana do Porto’2001 e na CMP, entre outros, demonstram a tomada de importantes posições de âmbito público e administrativo por parte de arquitetos e arquitetas influentes na cultura arquitetónica portuguesa na história recente. Mais ainda, o facto de assistirmos a um envolvimento progressivo dos arquitetos na esfera pública, como testemunha a última eleição para a Câmara Municipal de Lisboa, com arquitetas candidatas em todas as esferas políticas — de Filipa Roseta a Inês Lobo e Ana Jara — será um bom augúrio.

 

Edifício em Aldoar do arquiteto Manuel Correia Fernandes pertencente à cooperativa de habitação SACHE. Fotografia de Luís Ferreira Alves / Casa da Arquitetura

 

Por fim, em terceiro lugar, importa valorizar a dimensão pública do projeto, mesmo quando de pequena dimensão e de iniciativa privada. Com efeito, tomarmos consciência de que o espaço da habitação não se encerra na escala do edifício e do lote individual, mas estabelece relações coletivas, criando dependências com o espaço de trabalho, o espaço da escola, os espaços de lazer, terá impacto na definição e da cidade em que queremos viver.

 

[1] O texto deste primeiro ponto apoia-se, largamento, em dados apresentados e analisados no livro: Carlos Guimarães Pinto, Juliano Ventura, André Pinção Lucas, Filipa Osório, Trancas à Porta: Desfazendo mitos sobre a crise da habitação, Aletheia Editora, 2023. [2] Na vizinha Espanha e em Itália, pelo contrário, a habitação continua abaixo dos valores de 2011. As exceções nestes países ficaram a dever-se às grandes bolhas imobiliárias que tiveram no passado recente e à consequente forte correção dos preços durante a crise financeira.