22/12/2025

O livro “20 anos a fazer do Porto casa”, lançado por ocasião do 20.º aniversário da Domus Social, propôs-se a ser mais do que o relato da missão que tem vindo a ser concretizada pela empresa municipal. Folhear as mais de 500 páginas desta obra comemorativa é, ao mesmo tempo, uma oportunidade para conhecer melhor a evolução da cidade do Porto, nomeadamente em matéria de habitação social, e para revisitar diferentes décadas e respetivos contextos históricos, políticos e sociais da Invicta. Este espaço de estudo e de reflexão é, por isso, pontuado por nove artigos académicos originais, da autoria de especialistas de diversas áreas.

 

O sexto texto desta coletânea - publicado agora em versão digital - é assinado pelo economista Hugo de Almeida Vilares, professor na Faculdade de Economia da Universidade do Porto e Guest teacher na London School of Economics desde 2022, além de membro associado no Centre for Economic Performance da London School of Economics. Os seus interesses de investigação versam a Economia Urbana, a Econometria e a Economia do Trabalho.

 

 

Projetar (2024) [p.449-456] 

 

Habitação Pública no Porto: Uma habitação, um bairro, um local é antes de mais uma história de pessoas e das suas histórias.

 

A cidade é classicamente um aglomerado monocêntrico a partir do qual se definiram os seus anéis periféricos, e onde os movimentos pendulares das suas gentes eram de forma esparsa proporcionais às suas condições socioeconómicas. No Porto, ainda há quem se lembre da pobreza e degradação do edificado no seu centro, por vezes marcado por ilhas, resultado da incapacidade dos que não podiam custear as deslocações e tinham que viver ao lado do seu sustento; dos anéis periféricos onde a classe média minimizava a distância ao centro e ao trabalho de acordo com o seu poder económico, mas procuravam mais dignidade habitacional; e da opulência da Foz, onde os residentes, que a consideravam como não integrante da cidade quando se referiam às suas “idas ao Porto”, priorizavam amenidades e “exclusividade”.

 

Desde a revolução industrial, a urbanização crescente foi o motor transformador das cidades. A par das tradicionais dinâmicas endógenas, as cidades passaram a ser espelho de tensões entre a dinâmica habitacional e do edificado, e as imparáveis e rápidas dinâmicas de migração populacional. Estes desequilíbrios geraram períodos de rápido encarecimento do edificado; de precarização das soluções habitacionais que procuravam acolher todos; de confronto entre os que chegavam e os que estavam, levando a processos de gentrificação, onde alguns “novos residentes” mais abastados empurravam os que estavam para novas periferias; e de dificuldade das políticas públicas de darem uma resposta que acomodasse todos. A par, fomos assistindo à criação de novas centralidades, quando a atividade económica procurou fixar-se em terreno mais barato e com isso arrastar a população que lhe dá corpo. Assim, nasceram áreas metropolitanas.

 

Estes movimentos demonstram a natureza viva das cidades, que define a paisagem e as suas realidades, rua a rua, e permitem  enquadrar escolhas de política pública que a cada momento foram feitas, sob o inexorável jugo de urgentes necessidades. Não é incomum que passadas décadas se encontrem na paisagem erros urbanísticos claros, que a urgência do momento, ou a conjugação de fatores urbanísticos, arquitetónicos e sociais não permitiram prever e/ou fazer melhor. Alguns subsistem, e são feridas socioeconómicas e urbanísticas, outros são de tal forma encarados que a sua destruição e redesenho é a escolha, mesmo que tal signifique a inevitável perda de quem ali construiu as suas vidas. Um dos exemplos destes últimos é o Bairro do Aleixo.

 

O Aleixo, o último bairro camarário do Porto a ser construído antes do 25 abril, tinha como propósito responder à indignidade habitacional existente no Barredo e na Ribeira. À data a solução continha uma novidade singelamente promissora – a construção em altura, que permitia resolver em pouco terreno as dificuldades de muitos, sem significar, dada a curta distância, uma perturbação excessiva da vida desses habitantes, enquanto os aproximava de bairros mais opulentos como a Foz e Nevogilde, agora mais integrados na cidade.

 

Esta solução de política pública não foi singular nem ao Porto nem ao país. Quase em simultâneo, em Londres nasciam torres com o mesmo propósito, por exemplo em 1974, a hoje fatídica torre Grenfell, cuja localização no mais abastado bairro de Londres (Kensington-Chelsea) prometia soluções idênticas. O tempo acabou por demonstrar que estas soluções determinaram uma segregação inultrapassável em direta proporção à sua altura, e o seu fim foi-se tornando uma ambição. Hoje, em Londres ainda coexistem a pouca distância a torre Gherkin ou o Shard, das mais luxuosas torres da Europa, e a destruída Grenfell cuja demolição está prometida.

 

 

Construção do bairro do Aleixo. Câmara Municipal do Porto. Arquivo Histórico. [Identificador 689205]

 

 

Mas mesmo antes do Aleixo, os esforços públicos de acomodar as populações existiam desde pelo menos 1940, com o Bairro Duque de Saldanha sendo o primeiro bairro camarário do Porto. Neste esforço, também temos o Bairro da Pasteleira, construído em 1960. Face ao Aleixo, a necessidade era idêntica, a localização não muito diferente, mas a altura era para os padrões da época habitual. Se o impacto visual do bairro não foi semelhante ao do Aleixo, a segregação foi se igualmente instalando, criando na cidade uma divisão económica invisível hoje marcadamente patente ao longo da Marechal, como os portuenses a conhecem, e que a política pública vai tentando dirimir. Estes exemplos permitem baralhar as análises mais diretas. A altura, embora relevante, não foi suficiente para marcar caminhos de segregação materialmente diferentes.

 

Os resultados da política de habitação pública não são fáceis de prever, e basta-nos olhar, com o distanciamento de mais de 50 anos, para os bairros municipais construídos na década de 1960. Estando nos pés de quem decide a localização, a construção, a arquitetura, a forma de integrar no espaço público, e os habitantes, os bairros do Cerco do Porto, da Agra do Amial, do Aldoar, da Pasteleira, de Engenheiro Machado Vaz, de Fernão de Magalhães, de Campinas, do Carriçal, da Fonte da Moura, de Francos, do Outeiro, do Regado ou de São Roque da Lameira dificilmente se conseguiria prever quais seriam os seus destinos de coesão territorial 50 anos depois.

 

Hoje, sabemos que a integração socioeconómica foi muito diversa, havendo bairros que fizeram ascender as populações no elevador social, e hoje dificilmente são identificados como tendo uma génese municipal, e outros que as desagregaram da cidade, promovendo exclusão e isolamento. Parece óbvio que não foi apenas a construção, a altura, a arquitetura, os equipamentos no espaço público, ou o urbanismo que definiram estes caminhos.

 

Olhar para estas realidades permite afinar a decisão pública, percebendo o que poderá ser feito para dirimir as desigualdades urbanísticas e socioeconómicas existentes, e perspetivar a criação de habitação social que promova a melhor integração e coesão da cidade, para lá do edificado num olhar atento às populações. Em cada projeto é fundamental pensar cidade para lá da mera pressão populacional do momento, trilhando caminhos que permitam também, numa perspetiva intergeracional gerar coesão. A política de habitação pública tem de coexistir e comunicar com as políticas económicas, de educação, de transportes, de urbanismo e planeamento da cidade. É este um dos principais desafios dos decisores e do trabalho diário de quem faz, gere e pensa habitação pública. Uma habitação, um bairro, um local é antes de mais uma história de pessoas e das suas histórias.

 

 

Obras de urbanização na zona da Pasteleira, ao lado do bairro da Rainha Dona Leonor (1961-1962).

Câmara Municipal do Porto. Arquivo Histórico. [Identificador 296418]

 

 

Construção do bairro da Pasteleira (1959-1960). Câmara Municipal do Porto. Arquivo Histórico. [Identificador 277828]

 

 

Parque infantil da Pasteleira. Câmara Municipal do Porto. Arquivo Histórico. [Identificador 277832]

 

 

Bairro da Pasteleira. Fotografia de João Ferrand.