O livro “20 anos a fazer do Porto casa”, lançado por ocasião do 20.º aniversário da Domus Social, propôs-se a ser mais do que o relato da missão que tem vindo a ser concretizada pela empresa municipal. Folhear as mais de 500 páginas desta obra comemorativa é, ao mesmo tempo, uma oportunidade para conhecer melhor a evolução da cidade do Porto, nomeadamente em matéria de habitação social, e para revisitar diferentes décadas e respetivos contextos históricos, políticos e sociais da Invicta. Este espaço de estudo e de reflexão é, por isso, pontuado por nove artigos académicos originais, da autoria de especialistas de diversas áreas.
O quinto texto desta coletânea - publicado agora em versão digital - é assinado pela arquiteta Joana Guedes. Licenciada em serviço social, fez o mestrado em ciências do serviço social, com a especialidade em gerontologia social, e o doutoramento em gerontologia, no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar. A sua actividade profissional tem sido dedicada sobretudo à docência, no Instituto Superior de Serviço Social do Porto, nas áreas do serviço social e da gerontologia, assumindo atualmente a coordenação da licenciatura em gerontologia social.
O direito à habitação, sendo hodiernamente uma temática de relevância inquestionável, consigna-se como um direito fundamental e crucial à vida digna e com qualidade. Pelo peso que significa na vida humana, o direito à habitação tem sido amplamente discutido em organismos e fóruns internacionais e nacionais e foco das políticas, programas e iniciativas com pendor nacional e/ou local.
Vivemos e sentimos a casa enquanto “porto de abrigo”, espaço de conforto físico e emocional e alavanca para todas as batalhas da vida em sociedade. Contudo, o acesso a uma habitação digna e adequada é cada vez mais difícil para os grupos mais desmunidos do capital económico e mais expostos à precariedade e a múltiplos fenómenos de exclusão social.
O grande objetivo da habitação social passa pelo aumento da oferta de habitações a preços acessíveis, pelo que o seu peso e a dimensão afetarão a capacidade de resposta às necessidades das famílias particularmente das mais vulneráveis, quer se trate de agregados familiares mais jovens ou de agregados cujos rendimentos não permitem o acesso a uma habitação condigna e sujeita às regras do mercado.
A este respeito, o município do Porto, através da Domus Social, tem desenvolvido um parque habitacional robusto, que se espelha nos seus 50 conjuntos de habitação social, distribuídos pelas sete freguesias do município. Decorrente do seu forte investimento em matéria de promoção da habitação social e políticas de planeamento urbano, o município afasta-se claramente da média nacional, ocupando a primeira posição nacional no que diz respeita à percentagem de população que reside em habitação pública municipal. Por si só este é um dado com o qual nos devemos congratular! Contudo, numa cidade como a do Porto, a segunda cidade do País, onde coexistem realidades muito díspares e ainda ecovulnerabilidades muito acentuadas, o município não cruza os braços mas multiplica as suas ações interventivas, ora requalificando e beneficiando o edificado e o espaço público, ora desenvolvendo programas e projetos de apoio aos seus moradores.
De entre os referidos projetos, torna-se imperioso destacar o projeto Porto Importa-se, que se iniciou e se tem desenvolvido desde 2017, especialmente direcionado para o combate do isolamento social de adultos mais velhos residentes no seu parque habitacional. Não podemos ignorar o facto de a cidade do Porto ser particularmente envelhecida, com todos os desafios que a longevidade coloca, com uma população com idade igual ou superior a 65 anos na ordem dos 26%, e com um índice de envelhecimento de 227.8, ambos os indicadores superiores à média nacional (INE, Pordata, 2021).
Não podemos ignorar, concretamente, os atuais 8048 residentes a viverem no parque de habitação pública municipal, com 66 ou mais anos. De entre estes, por exemplo, cerca de 1950 são pessoas com mais de 70 anos a residirem sozinhas.
Este projeto surge, curiosamente, de pessoas para pessoas: foram os técnicos da Domus Social que, no seu quotidiano profissional, se deixaram interpelar pela fragilidade que caracterizava a vida de alguns dos seus residentes mais velhos. Em articulação com o Instituto Superior de Serviço Social do Porto, o projeto avançou no sentido da definição de metodologias orientadoras de um diagnóstico gerontológico cientificamente orientado e assente em vários domínios de análise, destacando-se a dimensão dos recursos sociais. Sempre que um participante revele enfrentar uma situação de isolamento severo ou de isolamento mais moderado, quando coexista mais uma dimensão de vulnerabilidade relacionada (dificuldade na realização de atividades de vida diárias, sintomatologia depressiva ou potencial défice cognitivo), a equipa do projeto sinaliza a pessoa para os parceiros das Juntas de Freguesia e outras entidades locais, visando potenciar as redes solidárias locais.
Ao longo das várias edições do projeto, este tem assumido relevância local e tem-se mantido fiel à sua missão, chamando a atenção para o fenómeno do isolamento social de adultos mais velhos, fenómeno ao qual não podemos ficar mais alheios. Destaca-se a sua ação no terreno de modo muito particular em período de pandemia (2ª edição do projeto) em que a população visada em risco de isolamento social aumenta de 44% na 1ª edição do projeto para 61%, em pleno período pandémico, multiplicando as intervenções e chamando a atenção de forma inequívoca para a importância de se georreferenciar e intervir sobre cada situação de risco. Promover uma sociedade mais coesa e solidária implica que nenhum cidadão mais velho enfrente dificuldades severas de forma isolada.
O carácter heurístico deste projeto, sobretudo se o considerarmos em contexto de habitação social, não nos permite, porém, estagnar naquilo que são as suas metas e ambições, até porque a grande maioria dos envolvidos deseja continuar a permanecer nas suas habitações, mesmo quando a dependência e a fragilidade humana se fizerem sentir de forma mais acentuada. Mas viver em casa e na comunidade (“ageing in place”) implicará sermos capazes de proporcionar aos mais velhos ambientes protetores e favoráveis, que compensem perdas e proporcionem suporte para que os cidadãos continuem pelo maior tempo possível autónomos, reforçando o seu bem-estar e o cumprimento dos seus direitos de cidadania (Fonseca, 2021).
Vivemos num país onde os mais velhos ainda apresentam uma taxa de risco de pobreza superior à média nacional (17,5% vs.16,2), onde quase um em cada três pessoas idosas não têm capacidade de assegurar despesas inesperadas, onde 24% não é capaz de manter a sua casa aquecida, 26% ainda vive em casas com telhado, paredes, janelas e/ou chão permeáveis a água ou apodrecidos, e onde quase metade das pessoas com 65 ou mais anos se diz sentir sozinha frequentemente ou alguma vezes (Relatório “Balanço Social, 2022). Mas também vivemos num país onde o aumento da expectativa de vida com cada vez melhor saúde, associada a conquistas de natureza médica, tecnológica e social favorece um número de pessoas idosas capaz de viver uma velhice saudável e ativa que, por si só, também constitui um desafio para as comunidades (Plano de Ação Porto Cidade Amiga das Pessoas Idosas 2023-2025, p.6). Em suma, envelhecer em Portugal pode ser paradoxalmente uma experiência muito heterogénea, implicando, por isso mesmo a emergência de respostas diversificadas, concertadas e inovadoras. Procurando responder a esta heterogeneidade, e às preocupações a ela associadas, emergem diversos documentos, de espectro nacional ou local, focados na promoção de uma velhice ativa e saudável.
Destaco, a título de exemplo, o recém-criado Plano de Ação de Envelhecimento Ativo e Saudável (2023-2026) que discorre em torno de um conjunto amplo de propostas sistematizadas em 6 pilares de ação: I. Saúde e bem-estar; II. Autonomia e vida independente; III. Desenvolvimento e Aprendizagem ao longo da vida; IV. Vida laboral saudável ao longo do ciclo de vida; V. Rendimentos e ecovulnerabilidades nomia do envelhecimento; VI. Participação na sociedade. Destaco, igualmente, o Plano de Ação Porto Cidade Amiga das Pessoas Idosas (2023-2025) que, pela primeira vez de forma integrada e participativa, agrega e sistematiza num único documento o acervo de propostas, medidas e políticas para uma resposta efetiva aos desafios do envelhecimento na cidade. Estas propostas organizam-se em cinco principais áreas de intervenção sugeridas no Relatório do 2º Fórum Global da Organização Mundial de Saúde sobre Inovação para as Populações Envelhecidas: Pessoas, Prestação de Serviços; Lugares e Ambientes; Produtos, Soluções e Equipamentos; Políticas Inovadoras. Destaco, por fim, os múltiplos contributos sistematizados por distintos investigadores na área do envelhecimento, contidos na atualíssima e incontornável obra de António Fonseca, Ageing in Place. Envelhecimento em casa e na comunidade. Modelos e estratégias centrados na autonomia, participação social e promoção do bem-estar das pessoas idosas, editada pela Fundação Calouste Gulbenkian.
Após leitura atenta dos documentos e reflexão sobre as virtualidades e limites das nossas respostas sociais dirigidas à velhice e sem qualquer pretensão de exaustividade, emergem algumas reflexões:
• Respostas tradicionais em que assenta primordialmente o nosso sistema de proteção (ERPIs, Centros de Dia, SADs) – atualização genérica das respostas e revisão profunda para melhor ajustamento às distintas necessidades dos seus públicos. Quadro de pessoal insuficiente e pouco diversificado. Com escassa formação em áreas específicas. Pouca diversidade de serviços. Modelo de financiamento pouco ajustado. Fraco investimento em políticas de qualidade e modelos de intervenção centrados nas pessoas.
• Representações sociais e perceções sobre envelhecimento – desconstruir preconceitos idadistas implica atuar ao nível das perceções sociais sobre o que significa envelhecer com qualidade. Rejeitar envelhecimento como um fardo e considerar que a capacidade das pessoas tem de ser olhada independentemente da idade. Abraçar o princípio da inclusão e da cidadania, pensando em ambientes adequados para todos, cidadãos. Favorecer formação de decisores políticos e de agentes que operam em setores basilares, como os serviços públicos. Favorecer parcerias com autarquias e universidades. Potenciar contextos de aprendizagem intergeracionais e incluir temas sobre o envelhecimento nos vários curricula escolares de diferentes níveis de ensino (adaptado de Alexandra Lopes e Luísa Pimentel, in Fonseca, 2021).
• Promoção de ambientes inclusivos, favorecedores dos direitos sociais e da participação dos mais velhos - Favorecer o modelo das “cidades amigas” ou inclusivas, com reconhecimento de um selo de qualidade. Disseminar o modelo do Provedor da Pessoa mais Velha, a nível mais local, evidenciando situações de não conformidade com os direitos dos mais velhos e a construção de ambientes inclusivos. Produzir medidas e recomendações que salvaguardem os direitos das minorias, quer seja de orientação sexual e de identidade de género, quer sejam minorias étnicas ou vítimas de violência doméstica (adaptado de Alexandra Lopes, Liliana Sousa e Óscar Ribeiro, in Fonseca, 2021).
• Conceção de soluções residenciais distintas – Promoção de modelos de habitação inovadores, como por exemplo co-housing, comunidades intergeracionais e apartamentos autónomos de pequena escala, aldeias seniores, residências assistidas; novas soluções de habitação assistida para os muito idosos; tecnologias inteligentes de apoio à vida quotidiana, que favoreçam a independência e a funcionalidade; casas inteligentes, enquadradas num contexto mais alargado de cidades e comunidades amigas das pessoas idosas (Klimczuk, 201, in Fonseca, 2021, p.37). Elaboração de guias de orientação acessíveis a todos para tornar as habitações mais seguras e acessíveis (adaptado de Bettencourt da Câmara, in Fonseca, 2021).
• Modalidades de Apoio Ao Cuidador e Promoção de “Ageing in Place” - Conceber e divulgar respostas dirigidas ao descanso do cuidador e estar atento às suas necessidades de formação e de apoio. Criar ou reforçar serviços de apoio e redes de suporte aos idosos que permaneçam em casa e respetivas famílias, quando necessário (ex: projetos de rastreio e combate ao isolamento social e que estimulem a participação e inclusão na vida comunitária). Ações psicoeducativas dirigidas às pessoas mais velhas que favoreçam o controlo sobre a sua vida e a rejeição do paternalismo de familiares ou profissionais, aprendendo a aceitar o risco que é viver assim como o treino do autocuidado e de estilos de vida saudáveis. Promoção de intervenções que favoreçam o melhoramento e a adaptação funcional das habitações, a mudança e reorganização dos espaços domésticos, tornando-os mais seguros e adaptados. Identificar deficientes condições de conforto, salubridade e segurança e/ou barreiras arquitetónicas nas habitações. Políticas energéticas que favoreçam que as pessoas idosas tenham acesso ao aquecimento e à refrigeração das suas residências. Serviços de apoio domiciliário diversificados e de qualidade. Criação da figura do profissional “gestor de caso” (adaptado de Luísa Pimentel; Carla Ribeirinho, Constança Paúl; Catarina Alvarez; Liliana Sousa e Óscar Ribeiro, 2021).
• Acesso e Treino de Tecnologias Digitais que Favoreçam a Sociabilidade e a Vida Independente - Conceber e implementar projetos que permitam criar uma ligação efetiva com o sistema de saúde (vigiando indicadores de saúde e potenciando a adesão às terapêuticas). Disseminar e aperfeiçoar sistemas de teleassistência que favoreçam a segurança, combatam a solidão e assegurem o acesso de produtos e serviços essenciais. Promover programas digitais que favoreçam a pertença a grupos, potenciem as sociabilidades, aproximem as famílias e as gerações e potenciem a participação em decisões comunitárias. Programas de promoção da literacia digital através do desenvolvimento de oportunidade de aprendizagem ao longo da vida (adaptado de Constança Paúl; Liliana Sousa e Óscar Ribeiro, in Fonseca, 2021).
• Saúde: Melhorar O Acesso e a Utilização dos Cuidados de Saúde - Garantir o acesso a serviços de saúde e a médico de família particularmente nas comunidades de pequena dimensão. Aumentar o número e a abrangência de programas de promoção de um envelhecimento saudável (literacia em saúde; atividade física; alimentação. Organização de rastreios estruturados de diagnóstico precoce de patologias com elevado impacto na autonomia, mortalidade e nos custos em saúde. Criação de uma linha experimental do tipo SNS 24, com secção especializada e com profissionais mais diferenciados em problemas associados ao envelhecimento. Criação de equipas profissionalizadas para apoio a pessoas com quadros demenciais, de fragilidade e com várias comorbilidades, utilizando sistemas de partilha de recursos (saúde e apoio social). Cuidados de fim de vida e apoio à possibilidade de morrer em casa (ex: disseminar cuidados paliativos) (adaptado de Mª João G. Moreira; Carla Ribeirinho; Liliana Sousa e Óscar Ribeiro in Fonseca, 2021).
• Valorizar o Estudo, a Formação e Qualificação dos profissionais na área do Envelhecimento - Desenvolver programas de formação e qualificação dos técnicos com intervenção comunitária, adequados aos perfis de envelhecimento regional. Desenvolver investigação na área para que as respostas e programas promovidos a nível local reflitam sempre as particularidades e os anseios de populações territorialmente situadas. Promover formação universitária na área da gerontologia para especializar profissionais na área dos cuidados e serviços dirigidos a adultos mais velhos (adaptado de Mª João G. Moreira; Joana Guedes in Fonseca, 2021).
Ora, se nos temos vindo a preocupar com os problemas habitacionais, particularmente relacionados com as acessibilidades e segurança, e com o combate ao isolamento social, acionando serviços de teleassistência e outros projetos e recursos da comunidade, teremos de equacionar novas respostas em função de um público mais velho cada vez mais distinto e heterogéneo. A implementação do “Ageing in Place” deve ser preocupação de todas as entidades territoriais e instituições. As políticas de habitação e muito particularmente de habitação social não podem ficar de fora deste desígnio e deste desafio constante de nos posicionarmos a favor de uma sociedade de rosto humano para todos e todas.
Referências Bibliográficas
Censos (2021), https://www.pordata.pt/censos/ quadro-resumo-municipios-e-regioes/porto-1113, acedido a 20 de junho de 2024)
Fonseca, A.M. (2021). Ageing in Place. Envelhecimento em casa e na comunidade. Modelos e estratégias centrados na autonomia, participação social e promoção do bem-estar das pessoas idosas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian
Peralta, S.; Carvalho, B. P.; Esteves, M (2022). Portugal, Balanço Social 2021. Um retrato do país e de um ano de pandemia, BPI Fundação La Caixa, Nova School of Business & Economics (https:// www.novasbe.unl.pt/Portals/0/Files/Reports/ SEI%202021/Relat%F3rio%20Balan%E7o%20Social_ Janeiro%202022.pdf, acedido a 20 de junho de 2024)
Plano de Ação de Envelhecimento Ativo e Saudável (2023-2026), https://cceativo.pt/wp-content/ uploads/2024/03/Plano-Acao-Envelhecimento- Ativo-e-Saudavel-2023_2026-1.pdf, acedido a 20 de junho de 2024)
Plano de Ação Porto Cidade Amiga das Pessoas Idosas (2023-2026), (https://coesaosocial.cm-porto. pt/files/uploads/cms/Porto%20Cidade%20Amiga%20 das%20Pessoas%20Idosas_PT.pdf acedido a 20 de junho de 2024)